O VIR-A-SER EM NIETZSCHE E OS ENCONTROS EM ESPINOSA, POR MARCOS RIBEIRO
Uma filosofia se dá por conexões, uma ligação entre pensamento e vida. Falar de um filósofo está para além de interpretá-lo, mas vivenciá-lo, como no pensamento que segue após a leitura, o livro saltando para o fora para destruir as subjetivações, as significações, os decalques da má consciência e do ressentimento. O pensamento filosófico não se encontra naquilo que dizem com frequência: “eu entendo”, mas no que se sente, seja um devaneio, um delírio, uma perturbação. Como Nietzsche que partia dos seus delírios para produzir sua filosofia, quando teve a visão do Eterno Retorno no momento que olhou para uma pedra, ou quando percebeu a beleza que era o vir-a-ser heraclitiano, que pode ser a luz para uma nova maneira de analisar o seu pensamento. E uma reflexão mais abrangente, pode fazer Nietzsche dialogar com outro filósofo, Espinosa, e mostrar o quanto havia de proximidade entre seus conceitos.
Nietzsche, pensando com Heráclito transcreve em A filosofia na Época Trágica dos Gregos, a asserção do filósofo pré-socrático: “Não vejo nada além do vir-a-ser, não vos deixei enganar! É vossa curta vista, e não a essência das coisas, que vos faz acreditar ver terra firme em alguma parte no mar do vir- a- ser e do perecer. Usais nomes das coisas como se estas tivessem uma duração rígida: mas nem mesmo o rio em que entrais pela segunda vez é o mesmo que da primeira vez.” Heráclito que ao dizer que tanto o rio quanto o homem mudam incessantemente, negou a existência do “Ser” do seu opositor Parmênides. A partir disto podemos concluir: Nada é, tudo o que acontece é inevitável, o que vemos ou o que sentimos é mera ilusão. Com Heráclito, Nietzsche conclui pela inexistência do ser, e partindo disso, há uma negação da razão e da metafísica socrática e cristã, como fica mais uma vez demonstrado em O nascimento da Tragédia: “Há somente um mundo e este é falso, cruel, contraditório, enganoso e sem sentido”, mas mais adiante ele coloca a arte como redenção: “a arte nada mais que a arte... Como via de acesso a estados onde o sofrimento é querido, transfigurado, divinizado, onde o sofrimento é uma forma de grande delícia.” Assim, o filósofo demonstrava um afastamento do pessimismo schopenhaueriano e uma crítica ao cristianismo, onde a aceitação da injustiça e do castigo são necessários à justificação de um Deus que serve de abrigo. E continua: “dizer sim sem reserva mesmo ao sofrimento, mesmo à culpa, dizer sim a realidade, dizer sim à vida... Ser ele mesmo o eterno prazer no vir-a-ser.”
Para indicar a semelhança entre Nietzsche e Espinosa, podemos partir da oposição de Espinosa a Descartes, quando este elaborou o dualismo psicofísico, em que a única verdade só se dá pelo cogito, e o corpo, pura exterioridade, concluindo-se daí uma hierarquia do pensamento sobre o corpo. Para Espinosa, não há hierarquia, pois a alma e o corpo sempre acontecem no mesmo evento. Deleuze, numa análise da questão que Espinosa refletiu sobre a ação sobre os corpos, disse: “Eu vivo ao acaso dos encontros e há uma variação contínua dos afetos e que uma ideia substitui a outra, assim vivemos num constante aumento-diminuição-aumento-diminuição da potência de agir.” Simplificando: somos o que somos ou o vir-a-ser depende exclusivamente dos encontros e dos afetos que nos sãos produzidos no dia a dia. Deleuze estudando Espinosa observa como os afetos decorrentes dos nossos encontros é o fio condutor que age no nosso vir-a-ser, dando o seguinte exemplo: “eu cruzo na rua com Pedro com quem antipatizo e depois passo por ele, e digo ‘bom dia Pedro’, ou então sinto medo com quem me antipatizo. Subitamente vejo Paulo que tremendamente me simpatizo, e eu digo ‘bom dia Paulo’, tranquilizado e contente.” Isso é para Espinosa, diz Deleuze, Potência de agir – e essas potências são eternas. O afeto que Pedro causa no meu corpo e mente, produz a ideia de Pedro me entristecendo. Assim como pode acontecer o contrário, encontro na rua Paulo que me agrada e depois encontro Pedro que me desagrada, é o último encontro que irá fazer minha potência de agir aumentar ou diminuir. No caso de termos um mau encontro e ficarmos tristes, Deleuze diz: “A tristeza não torna ninguém inteligente, na tristeza estamos arruinados.” Esse foi o ponto do vir-a-ser, o mau encontro, e Deleuze prossegue: “Geralmente as pessoas fazem um somatório de suas infelicidades, é de fato aí que a neurose começa, ou a depressão, quando alguém se mete a contabilizar”, Espinosa, diz Deleuze, propõe: “Ao invés de fazer um somatório de nossas tristezas, tomar uma alegria como ponto de partida local à condição que sintamos que ela nos concerne verdadeiramente.” Fazer da alegria um trampolim até encontrarmos outra alegria.
Ora, se tudo que acontece e que aconteceu é e foi inevitável, logo esse acontecimento, se me causa sofrimento, em breve não será mais o mesmo (com exceção, por exemplo, de quando nosso corpo entra em contato com o arsênico, nesse caso é o arsênico que tem o bom encontro com o nosso corpo e nos destrói), como no rio de Heráclito, daí o pessimismo pode ser substituído por potência, vontade de vida, de criação, sabendo que esse momento se dissolverá em outro sentimento. Porque o bem ou o mal não é algo permanente, mas flutuante, como Espinosa diz na Ética: “Chamamos de bem ou de mal aquilo que estimula ou freia a conservação do nosso ser, isto é, aquilo que aumenta ou diminui, estimula ou refreia nossa potência de agir [...] Portanto, o conhecimento do bem e do mal nada mais é do que a ideia de alegria ou de tristeza que se segue necessariamente desse afeto de alegria ou de tristeza [...] o conhecimento do bem e do mal nada mais é do que o próprio afeto, à medida que deles estamos conscientes.” Espinosa que ao tirar Deus do céu e trazê-lo para a Terra, demonstrou que somente Deus (ou a Natureza) é livre. Deus não pode ser afetado, ele age sem a interferência das paixões, um tufão devasta uma cidade não por ser mau, mas porque efetua a sua livre vontade, exerce a sua potência.
Nesse sentido, se somente Deus é livre para agir, o homem é escravo das paixões produzidas pelos encontros, e somente um afeto mais forte destrói um afeto forte, se eu estou triste porque rompi um relacionamento, só me livrarei dessa paixão triste se encontrar um novo amor, mais forte daquele que perdi. Mas mesmo que eu o encontre, mesmo assim ainda serei passivo dos encontros, um escravo da Natureza, um novo mau encontro pode me desabar novamente, e é sabendo da nossa não liberdade, que podemos agir diante do necessário.
Dando outro exemplo: imaginemos que nossas vidas dependessem de uma moeda, que de um lado fosse tristeza e do outro fosse alegria, e como no jogo de cara e coroa toda manhã ao acordar poderíamos saber como seria o nosso dia ao jogar a moeda para o alto, se a moeda caísse no lado da alegria já saberíamos como seria o nosso dia: só encontraríamos pessoas agradáveis, pessoas que iriam trazer a ajuda que precisamos, ganhar na loteria, encontrar um grande amor etc. Já no outro amanhecer a moeda cairia no lado da tristeza; perderíamos dinheiro, seriamos assaltados, encontraríamos apenas pessoas que diríamos: “Estragou o meu dia”, sofreríamos acidentes, romperíamos relacionamentos, ou seja, um inferno. No próximo dia ao jogar a moeda novamente e ... novamente tristeza, e no outro, tristeza ou alegria? O acaso: novamente tristeza e isso poderá se repetir por algum tempo, a probabilidade do acaso. Mas, a tristeza seria para sempre? A probabilidade do acaso nunca é para sempre e um dia a moeda irá novamente cair no lado da alegria, ou seja, como no Eterno Retorno que foi revelado por Nietzsche. E se tudo volta, o bem e o mal, é preciso viver para além do bem e do mal, como ele enunciou em A vontade de Potência: “E se o estado deste instante esteve aí, então também esteve aquele que o gerou, e seu estado prévio, e assim por diante para trás de onde resulta que também uma segunda vez ele já esteve aí- assim como uma segunda, terceira vez ele estará aí... Homem! Tua vida inteira, como uma ampulheta, será sempre desvirada outra vez... E então encontrarás cada dor e cada prazer e cada amigo e cada inimigo e cada esperança e cada erro.... É cada vez para a humanidade, a hora do meio dia”. Ou, hora de desvirar a ampulheta, hora do novo vir-a-ser.
Marcos Ribeiro
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