Somos acontecimentos
O mundo é algo que foi e continua constantemente sendo apresentado a nós. O ser humano, desavisado, fica estático diante dele recebendo as informações e absorvendo tudo aquilo que lhe dá contentamento ou medo. O perigo dessa passividade diante do mundo, são as crenças quando se tornam dogmas, e há uma inocência crer que os dogmas só habitam nos sistemas religiosos e nas ideologias políticas. A construção da realidade vai muito além , e é somente no pensamento artístico que se pode desvelar o rosto da Aparência do real, que faz toda reviravolta daquilo que somos e acreditamos, tal como na revolução copernicana: não é mais um "eu" que gira, cego, em torno do mundo, das suas ideias, dos seus valores, das suas verdades, mas o pensador artista que insurge para colocar tudo aos avessos, para torcer, recortar, mostrar a sua face nua. Deleuze seguindo a tradição da vida como obra de arte (junto com Michel Foucault ), pensava na existência sem o sujeito, a subjetivação desvinculada da "pessoa". Um "eu" para fora de mim, um "eu" que muda de acordo com o dia, como na fórmula do rio de Heráclito.O que é o "eu" ? Deleuze respondeu , "um acontecimento : uma hora do dia, um rio, um vento...". Assim, o que é o problema, a fé para sanar determinada angústia, o amor, a intuição, a raiva, o descontentamento, a doença, a morte ? Acontecimentos. Somos acontecimentos; estamos deslizando, viajando no fluxo da existência sob a casca do "eu". O que é a traição? Um acontecimento, um devir-estúpido do traidor. Estar imerso no "eu" é o solo fértil para a semente do ressentimento florescer; se desvincular do "eu" é por fim à tristeza da ofensa. Isso é psicologia.Usando o exemplo dos covardes, dos violentos, eles acreditam nas suas verdades,"eu sou assim", "Deus fez o mundo para ser assim", do tudo que surgiu de um Deus justo, legislador, que se vinga, que é reativo. O pensamento artístico só acredita nas suas criações, sabe que oprimir o outro é mau porque ele precisa da liberdade para produzir o amor, a arte e o pensamento, que são as tintas para sua tela, o seu devir artista no mundo . Não há outra alternativa diante dos fascistas defensores de verdades absolutas ( policiais e juízes da sociedade e dos "bons costumes", do comportamento alheio, que se utilizam de tantos disfarces, tantos outros nomes), que não seja ignorá-los, como Zaratustra, quando disseram para ele: " Olhem Zaratustra! Então não passa por entre nós como por entre animais?" E ele respondeu: " Mais valeria dizer:' Aquele que pensa passa pelo meio dos homens como por entre animais'."
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